MORDE E ASSOPRA?

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Gosto demais de ditos populares, apesar de, não sei porque, ter dificuldade em entender e memorizar alguns deles. Enquanto refletia sobre o tema desse artigo, que é algo que venho pensando há algum tempo, a imagem da expressão “morde e assopra” me veio à cabeça. E isso, que virou até tema de novela, tem simplesmente tudo a ver com o que vamos falar aqui.

A origem desse dito popular veio da observação do comportamento de morcegos, conhecidos por sugarem o sangue de suas presas sem que elas percebam. Isso porque, ao entrar em contato com a saliva do animal, a ferida se anestesia e não é sentida. Então, nossa espécie, muito da contadora de histórias, passou a justificar a ação da bat-mordida indolor como se os morcegos assoprassem os furos da ferida para que as vítimas não sentissem dor. O que chega a ser hilário, acabou virando uma expressão que usamos para nos referir a uma pessoa hipócrita, que muda repentinamente de comportamento para compensá-lo de alguma forma, e que faz primeiro algo ruim e depois algo bom. O único problema é que a “mordida” não deixa de existir, mesmo depois da sequência boa. E para ela temos uma emoção, uma sensação: uma consequência.

Você fica com a mordida ou a assoprada? A resposta pra essa pergunta não é uma escolha. Acredite: você sempre vai ficar com a mordida.

Tríplice contingência: A+ B = C

A ciência diz que tudo o que fazemos tem sempre uma única consequência e essa consequência é sempre imediata. Skinner, psicólogo americano, ao estudar o comportamento de animais como pombos e ratos, descobriu o que chamamos de tríplice contingência. De uma maneira bem simplificada, esse nome difícil quer dizer que todo comportamento sempre tem uma consequência e, ao mesmo tempo, ele acontece a partir de algum sinal, algum estímulo que o antecede. Vamos pensar em um treino simples com um cachorro. Eu ensino meu cachorro a sentar e quando ele senta eu dou um petisco. Nesse caso, a tríplice contingência ficaria assim:

Simples, não? E, da mesma forma, todo, veja bem, TODO e QUALQUER comportamento segue essa mesma regra. O ambiente oferece ao animal algum sinal, alguma dica que faz com que ele emita um comportamento e, em seguida, o ambiente oferece a esse animal alguma consequência, que pode ser boa ou ruim. Fácil?

Análise funcional do comportamento

Isso é simplesmente a coisa mais importante dentro da análise do comportamento, que é a ciência que estuda o comportamento a partir de uma visão funcional, ou seja, por meio de um raio x detalhado do que antecede uma ação e do que a sucede. Sempre, veja bem, SEMPRE que sou procurada por qualquer cliente que tenha uma questão comportamental com seu cão, eu pergunto qual o problema e, em seguida, pergunto: “E por que ele faz isso?”. Nem sempre o cliente sabe, ou às vezes fala “Porque ele é desobediente” ou “Porque ele quer me irritar”. E essas não são respostas válidas dentro da ciência do comportamento, simplesmente porque não fazem sentido nenhum. Não podemos justificar um comportamento com uma resposta que não tem relação com a consequência direta que esse comportamento traz ao animal. Vamos ver aqui um outro exemplo, dessa vez, com um comportamento indesejado bem comum:

Fica claro aqui que a Suflair não está pulando na tutora para sujar sua roupa ou porque é desobediente, não é? Se ela quer atenção e ganha interação social quando pula, seja dando apenas um oi para ela parar ou até um grito de susto, ESSE é o motivo dela manter o comportamento. E muitos comportamentos indesejados são mantidos pelas pessoas exatamente dessa forma.

Assim, fica claro que todo comportamento tem uma consequência imediata para o cão. E se essa consequência for boa para ele, o comportamento vai se repetir. Se for uma consequência ruim para ele, o comportamento não vai se repetir. Não existem cachorros masoquistas e, mesmo que existissem, até mesmo os masoquistas (que gostam de sofrer), recebem coisas boas do ambiente, pelas quais acabam por manter o comportamento, pois, afinal, o que lhes dá prazer é sofrer. Está claro? Ou seja, todo comportamento que existe, tem reforço envolvido. Aprenda isso.

Se… então…

Então, o comportamento funciona dessa forma:

  • Se eu levo multa quando estou dirigindo sem cinto de segurança, então eu passo a entrar no carro e colocar o cinto para evitar tomar multa, ou seja, a consequência ruim fez com que meu comportamento de andar sem cinto não se repetisse;
  • se meu cachorro inseguro late na guia toda vez que uma pessoa passa por ele e, então, a pessoa se afasta, aquela consequência boa (se livrar do medo) faz com que ele repita esse comportamento;
  • se meu filho não faz a tarefa da escola e então fica no videogame, a consequência boa desse comportamento vai fazer com que ele se repita;
  • se um rato de laboratório toma choque toda vez que ele encosta na porta da caixa de experimentos, então, essa consequência ruim vai diminuir o comportamento dele de tocar na porta.

Podemos descrever infinitos exemplos sobre milhares de espécies e o resultado será sempre o mesmo. Consequências que tenham contingência, ou seja, estejam diretamente relacionadas aos comportamentos que as antecedem, irão fazer com que esses comportamentos aumentem ou diminuam. E aqui quero trazer o ponto central que me motivou a escrever esse artigo.

Entre trancos e petiscos

Adestradores mistos, que insistem em utilizar a parte que lhes interessa da ciência para treinar cães e deixar grande parte do estudo do comportamento e do bem-estar de lado, não estudam sobre aquilo que é mais importante quando se lida com modificação comportamental: a tríplice contingência. E, como você viu, somente o termo é que é difícil, mas sua compreensão é simples!

Então, quando um adestrador misto, que usa enforcador, latinha de moeda, borrifador de água ou de produto amargo, mas também usa carinhos, elogios, clicker e petiscos, se comunica com um cão e o ensina a emitir comportamentos, veja o que acontece.

Ou seja, a probabilidade de Lollo se sentar quando o enforcador for colocado nele a próxima vez é imensa, não é? Para se livrar da dor e do medo que gera o enforcamento (mesmo quando o enforcamento é feito por uma guia unificada de pano, ok?). Então, o adestrador acabou de ensinar ao cão a seguinte contingência tríplice: quando eu te enforcar, se você sentar, então eu te libero do enforcador. Bem claro, certo?

Mas, esse mesmo adestrador misto, famoso, boa pinta, que é tão legal e tem tantos seguidores no Instagram, acredita que adora cachorros, fala fininho com eles, faz carinho quando chega e, depois de liberar o enforcador do Lollo, o que ele faz? Fala: “Muito bem, Lollo!”, faz um carinho e dá um petisco para ele. E o Lollo, que já está super aliviado por ter se livrado daquela dor e do medo que ele passou, abana o rabo, aceita o carinho e pega o petisco. E a tutora do Lollo fica feliz da vida por perceber que o Lollo gosta do adestrador misto, que ele está bem e vai ficar “obediente” (detesto essa palavra). Ou seja, tudo certo, né? NÃO! TUDO ERRADO!

Veja só, onde entra o carinho, o petisco e o elogio na análise do comportamento feita ali em cima? Isso mesmo! Em lugar nenhum. Ou seja, como esse cara bonitão não estudou sobre aquilo que é mais básico da análise comportamental, ele não sabe que o que vai levar o cachorro a sentar da próxima vez não é o petisco ou o elogio ou o carinho, mas o medo de levar outra enforcada! E esse cara legal fala pra todo mundo que ele usa reforço positivo. Porque afinal, mesmo mordendo, depois ele assopra! Então, vou falar bem devagar para ficar bem claro.

Reforço é tudo aquilo que aumenta a probabilidade de um comportamento acontecer no futuro. E isso quem disse não fui eu, foi Skinner. Reforço positivo é algo que adicionamos ao cão para que ele repita um comportamento. Algo que ele queira, como carinho, elogios, comida, brinquedo. Até aqui, nada de novo, certo? Mas, então, como esse carinha famoso fala que trabalha com reforço positivo sendo que o comportamento que ele ensinou vai aumentar por causa do medo de ser enforcado e não por causa do petisco, carinho e elogio que ele deu DEPOIS? A resposta é uma só: porque ele não sabe o que é reforço. Imagine você levar seu carro em um mecânico que não sabe o que é um motor. Ele conhece carros, mas não sabe o que mantém o carro funcionando. É isso o que acontece com esse adestrador. Ele não sabe o que é reforço e o confunde com petisco, carinho e elogio. Dessa forma, tudo o que ele está fazendo é iludir o cliente, o cachorro e a si mesmo, propagando uma fake news de que usa reforço positivo. Então, vou repetir de uma outra forma pra não haver dúvidas.

Carinho, petisco, elogio, brinquedo, liberdade, atenção, comida, passeio, acesso a outros cães, acesso a um lugar privilegiado da casa, PODEM ser exemplos de reforços para o seu cão. Mas só serão reforços se estiverem intrinsicamente relacionados ao comportamento que os precedeu e se forem coisas que seu cão deseje. Ou seja, dar petisco, carinho e elogio a um cão que acabou de aprender a sentar por medo NUNCA vai se relacionar com o comportamento que o cão acabou de aprender. Vai apenas MASCARAR a emoção negativa que o cão sentiu anteriormente e DISFARÇAR o real aprendizado que o cão acabou de ter. E sabe qual foi o real aprendizado dele? Ele entendeu claramente que, quando esse cara chegar, pode ser que ele dê coisas boas, mas pode ser que ele faça coisas ruins. Então, ele fica confuso, ansioso, sem saber o que esperar, no que confiar. Será que ele vai morder? Será que ele vai assoprar? E aprendeu também que quando algo vier no seu pescoço, é melhor sentar logo para se livrar daquilo. É isso que você quer para o seu cão? É esse tipo de aprendizado que queremos promover para nossos filhos caninos? Tenho certeza que não.

Diga não à mistureba!

Ir a um restaurante por quilo e misturar carne, peixe, frango, arroz, macarrão, torta, molhos e comidas de todos os países em uma mesma refeição, pode pesar bastante no seu estômago. Misturar trancos e petiscos traz o mesmo resultado. Não cai bem, nem pro bem-estar do seu cachorro, nem pras emoções dele. O treinamento positivo privilegia o bem-estar acima da eficiência de uma técnica. Porque assumimos que para termos resultado no trabalho, temos que ter ética e respeito à dignidade do outro. Como diz a Dra. Susan Friedman “Ser eficaz é um critério insuficiente para o uso de uma técnica aversiva”. E vamos além quando levamos essa discussão para a questão do uso de recompensas que aparecem para mascarar a eficácia dos aversivos. Por isso que na primeira parte do texto eu disse que não há escolha entre morder e assoprar, porque o assoprar nunca irá retirar a existência da mordida. E é pior ainda quando fica claro que essa recompensa nem se relaciona diretamente com o comportamento do cão.

Se fossemos ampliar a analogia para o morde e assopra, fica claro que o assoprar não vai se relacionar com aquilo que a pessoa fez assim que recebeu a mordida. Ela vai aprender a não fazer mais aquilo, seja lá o que for, por medo de ser mordida novamente e, assim como o cão diante daquele adestrador que enforca e elogia, sempre se sentirá insegura diante de alguém que tem essa atitude.

Então, você que é tutor de cachorro e achava que experiências como trancos, enforcamentos (bem de leve, com “guiazinha” de “paninho”), borrifadas, cutucões precisam fazer parte do aprendizado do cão, porque depois ele ganha coisas legais, não caia nessa armadilha!! Aprender por medo é sempre a pior opção. E você que é adestrador e ainda não conseguiu abrir mão do uso de técnicas e ferramentas aversivas, estude mais, estude muito, busque ajuda com quem já fez esse caminho e se muna de informações para conseguir utilizar a ciência em sua totalidade para o treinamento de cães. Você vai se sentir muito melhor!

Ninguém que contrata um adestrador quer que ele faça mal para o seu cão, mas as pessoas tendem a confiar que no fim do caminho tudo vai ser justificado, apesar do cão sentir medo, apesar do cão ficar desconfortável, apesar da mordida. E o fato é que o aprendizado não precisa incluir dor, medo, força ou coerção. O melhor caminho, tanto para tutores como para adestradores, é o do conhecimento, da compreensão de como ocorre a aprendizagem dos cães, do que é reforço e punição dentro da ciência, para que todos possam respeitar a autonomia dos cães e a confiança deles em nossa espécie.

Eu não sou adepta do treinamento positivo porque eu sou legal, boazinha ou porque amo cães. Eu sou adepta porque essa é a única forma baseada na integralidade da ciência do comportamento para se trabalhar com modificação comportamental. E, claro, como amo cães e amo meu trabalho, não aceito pensar ou agir de outra forma que não seja pareada com a ciência.

Pra que morder e depois assoprar? Simplesmente não morda! Deixe a mordida pros morcegos, que sabem o que estão fazendo nesse aspecto.

 

Carolina Jardim

Psicóloga e Especialista em Comportamento Animal
Consultoria comportamental, formação de adestradores, treinamento positivo
Turma do Focinho