MILKA e criação responsável

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Outro dálmata surdo?

Quando a Magali morreu, eu estava fazendo um trabalho de pós graduação em comportamento animal, sobre as repercussões da surdez congênita na comunicação entre o cão e o tutor, relatando o caso dela. Na pesquisa, me deparei com uma afirmação da treinadora americana e tutora de uma dálmata surda, Priscila Ross: uma vez que você tem um cão surdo, você nunca deixará de ser tutor de um cão surdo. Terminei aquela frase e comecei a chorar copiosamente. Vi que precisava encontrar outro filhote surdo, como ela. Aquilo mudou minha energia e pareceu já começar a preencher aquele buraco que tinha se aberto dentro de mim desde a perda da Magali.

Entrei em contato com dezenas de criadores da raça. Mas agora, oito anos depois, minha busca foi um pouco diferente. Já tinha conhecimento de que a maioria dos criadores de Dálmatas já teve ou tem cães surdos, mas oculta os dados, eutanasia os filhotes ou, como aconteceu comigo, os vende, mesmo sabendo da surdez ou, pior ainda, vende sem nem mesmo testá-los antes. Assustei diversos deles quando falava que queria um filhote surdo bilateral. Ouvi frases como: “você quer um filhote surdo???” e “nós trabalhamos com controle genético de linhagens e nunca tivemos filhotes surdos” e outros criadores que simplesmente passaram a ignorar minhas mensagens quando eu falava o que procurava de fato.

Até que, finalmente, recebi um retorno do Canil Spot One. A criadora Nathália me contou que, pela primeira vez, tiveram um filhote surdo bilateral. Já havia feito todos os testes clínicos e, infelizmente, confirmou a surdez. Me identifiquei imediatamente, dizendo que era adestradora e ex-tutora de uma dálmata surda e fazia especialização no trabalho com a comunicação de cães surdos. Mesmo assim, tamanha a ética da criadora, ela me pediu que aguardasse uma posição, pois o filhote já havia sido reservado (para ser vendido, antes do período de testes de audição) e que ela teria que falar com a tutora, comunicando-a sobre a surdez, para verificar se ela gostaria de ficar com ele, adotando-o, é claro. Depois de alguns dias recebemos a notícia de que ele seria nosso. É claro que no áudio de agradecimento mal conseguia pronunciar as palavras, de tanta emoção, misturando uma imensa alegria e uma enorme noção de responsabilidade.

Um bebê em adaptação ao novo lar

Naquele momento, ficou evidente o que significa um criador responsável no sentido literal do termo. Mas as revelações ainda estavam apenas começando. Milka (esse é o nome dele, por ser meio chocolate, meio dálmata) sempre foi tratado sem nenhuma diferença, em relação aos outros filhotes, pela criadora. Teve fotógrafa profissional, recebeu kit da Royal Canin, foi microchipado, doado com certificado de adoção, foi incluído no grupo de whatsapp da Família Spot One (em que todos os tutores trocam experiências sobre seus cães) e, principalmente, passou pelo mesmo trabalho de socialização de oito semanas feito com todos os filhotes, para que se habituem ao toque, à manipulação, a barulhos (fogos, chuva, buzinas – não no caso dele, claro), a diferentes estímulos e objetos, a pessoas (crianças, idosos, pessoas desconhecidas), a procedimentos (corte de unhas, limpeza de ouvido, escovação), a outros animais (cães adultos, outros filhotes, diferentes portes) e a ambientes diversos.

Bem socializado na clínica veterinária

Como consequência de todo esse processo, Milka tem o temperamento absolutamente equilibrado e dentro do padrão esperado para a raça, sem nenhuma tendência à reatividade, medo ou ansiedade exacerbada. É claro que todo o trabalho realizado com ele não foi interrompido, o que garantiu a continuidade de sua socialização, após a adoção e mudança de ambiente. Na semana em que chegou, Milka foi incluído em uma turma de Puppy Class, com outros três cães, em que foram trabalhadas todas as questões que já tinham sido iniciadas pela criadora, além de uma habituação a frequentar uma clínica veterinária e o ambiente de um banho e tosa. Paralelamente, começamos a ensinar comandos básicos de obediência por meio da linguagem de sinais, incluindo seu nome, por meio da letra M do alfabeto de Libras.

Toca aqui!

Hoje com nove meses, Milka convive com todos os tipos de cães, pessoas e estímulos com tranquilidade e seu passatempo predileto, além de caçar borboletas, é brincar de luta e de correr com seus outros dois irmãos Zion, um Border Collie de seis anos, e Lola, uma SRD de oito anos. Há três meses, foi reencontrar sua família de sangue no Rio de Janeiro, viajando 10 horas pra chegar lá. Passou três dias de muita alegria, aprendendo a caminhar sem guia, entrar em lagos e brincar de luta por horas seguidas com dois irmãos de ninhada, uma tia e três primos.

Encontro da família Spot One no Rio de Janeiro

Sua mais nova conquista foi ter sido indicado pela proprietária do canil para participar de um evento para mais de 400 pessoas, na cidade de São Paulo, organizado pela empresa Tupperware. No encontro, entrou no palco com o diretor da empresa, para promover uma viagem oferecida para a Croácia, país de origem da raça. Após a apresentação, foi modelo para uma sessão de fotos com os distribuidores da empresa. Foi super elogiado pela equipe organizadora, pelo diretor e pelos participantes por sua postura e docilidade. Muitas pessoas diziam não acreditar que ele era surdo e ficaram curiosas em saber como ele aprendeu a “ser comportado” sem escutar. Representou muito bem a raça (que tem fama de bagunceira e desobediente) e os cães surdos (que muitas vezes são considerados não-treináveis pela sua deficiência).

Com o diretor no evento da Tupperware

Milka é a prova, viva (claro), de que a eutanásia, o abandono ou a omissão não são as respostas para o problema. No dia em que ele chegou à nossa casa, já vimos o quanto ele era equilibrado. Interessado, curioso, mas nada ansioso, nada medroso, pelo contrário, super dócil e amoroso. E sabemos que ele é o resultado de um trabalho conjunto de esforço, dedicação e respeito à vida. Uma criadora que, além de não negar a existência de um cão surdo nascido em seu canil, decidiu lidar com ele de forma ética, responsável e, acima de tudo, humana. Infelizmente, não há dados oficiais sobre o número de Dálmatas surdos eutanasiados anualmente, mas a própria associação americana de criadores da raça aconselha a eutanásia, para evitar que o gene se perpetue. Será que a melhor forma de lidar com o problema é acabar com a vida de quem o tem? Nós sabemos a resposta.

Criador responsável é aquele que enfrenta o desafio de lidar com uma questão genética como essa com integridade. Cruzar cães e vender suas ninhadas pode ser uma tarefa bastante simples, mas conhecer a fundo a raça, estudar sobre suas questões genéticas, trabalhar com a socialização de seus filhotes, garantindo não só pintas lindas e perfeitas, mas cães equilibrados, é bastante complexo e, infelizmente, uma exceção.

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